As crônicas da cidade de Curitiba dizem que em tempos recentes vivera ali certo juiz, o dr. S.M, filho de certa nobreza corporativa e o maior dos juízes do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Como sói tradicional a incerteza em prever o passado no Brasil, os fatos sobre sua trajectória perdem-se em narrativas circulares dessas que dão mais volta ao quarteirão do círculo de fogo das intrigas, e tudo muda em velocidade vertiginosa a seu redor.
O certo é que foi herói. Não é mais. É certo que para alguns é vilão, mas para outros, ainda não. É quase certo que condenou muitos, e padece agora o risco de ser condenado nos tribunais onde onde um dia foi rei, agora é réu.
Na mesma semana em que se anunciou uma anistia ampla, geral e irrestrita no país, houve a indicação pelo Palácio do Planalto de novos desembargadores que cuidarão do julgamento de Sérgio Moro. Ex-juiz, ex-algoz deLula e outros deputados, ele condenava em seus tempos áureos políticos com a água que prometia lavar o país à jato, passar o país a limpo.
O caminho para obter as condenações, ficou claro depois, exigia preencher lacunas sobre corrupção com novas interpretações de leis vigentes em períodos anteriores. Exigia colaboração para unir fatos reais, baruscos como pedra, a factoides colhidos sob pressão policial, desconstrução de imagens públicas, prisão irregular e coação emocional.
Parecia lembrar Simão Bacamarte de Machado de Assis, que no Alienista internou todos moradores de Itaguaí na Casa Verde, por constatar que todos tinham algum tipo de loucura – assim como Paulo Roberto Costa, Renato Duque tinham por obsessão receber propinas. Moro parecia encontrar corrupção em todos políticos, em tudo que via. E a todos filiados a agremiações partidária a prisão parecia um destino inescapável.
Se os fatos não estavam na ordem estabelecida por Moro, reorganizava os depoimentos e os corrigia nas oitavas para obter a narrativa desejada por seu grupo. “Procure e encontrará, mesmo que não exista!”, era o lema dos procuradores do Ministério Público Federal. Conexões inexistentes foram feitas entre os elos verdadeiros de doações legais da iniciativa privada e até um ex-presidente da República foi parar na cadeia, por suspeitas e casos investigados parcialmente, outros nem tanto.
Como o mundo é circular, a roda da fortuna girou para Sérgio Moro e para Luiz Inácio. Lula amargou 582 dias de prisão, mas hoje vive no Palácio da Alvorada – que foi lar de Jair Bolsonaro, um improvável fenômeno até a política se desmanchar nas gravuras feitas pelo juiz no cenário nacional. Hoje, Moro é político, como tantos que cassou durante sua judicatura. Mas será julgado no refluxo da onda antipolítica que criou e interferiu na história do país. É um homem sem aliados de peso, sem partidos fortes para protegê-lo, sem a lei ao seu lado. Pode perder o mandato senatorial, para antegozo dos que um dia condenou.
Ao final do alienista, Simão Bacamarte se tranca solitário em sua Casa Verde, o sanatório onde o médico encontrou seu refúgio do mundo imperfeito de pessoas loucas e anormais, ou o contrário, dependendo do que o leitor queira interpretar. O conto machadiano é cíclico, com bastante ironia em cada linha. Mas a história brasileira parece ser ainda mais irônica com seus personagens reais.
A Moro, resta impor uma sentença a seu legado ainda em aberto e exemplo duvidoso: “A lei existe para ser respeitada. Mas se nós não a respeitarmos, quem nos respeitará?”
P.S.: O texto desta semana é uma singela homenagem a Carlos Henrique de Almeida Santos, um amigo que sempre nos chamava a olhar com atenção as belas coisas da vida, as mais essenciais: como uma bela manhã de sol de céu azul, um lindo poema mesmo que em prosa, a vida passando diante dos nossos olhos em todo seu esplendor, ou uma boa gargalhada. A beleza estava sempre ao alcance de seus olhos. Ele sempre a via – e a abraçou com ardor.
Por Márcio de Freitas