A cidade fundada pelo jesuíta espanhol Padre José de Anchieta tem uma geografia bastante peculiar, com seu mapa remetendo a uma cruz. É bem verdade que essa cruz é disforme, com um alongamento mais profundo nos pontos cardeais leste e sul do que no norte e oeste. No entanto, essa representação gráfica serve para mostrar uma característica de composições de classe que impacta absolutamente na hora do sufrágio. No centro dessa cruz, concentra-se a riqueza da cidade, as classes A e B, que representam 39,1% dos munícipes. Na extremidade da cruz, estão as classes C2 e D, 37,3% da totalidade dos paulistanos, e na ligação entre o centro da cruz e sua extremidade está a classe C1, que representa sozinha 23,6% do eleitorado e costuma ser a definidora para eleger o prefeito da maior cidade da América do Sul.
Historicamente, São Paulo tem um embate entre o candidato das massas periféricas e o candidato do centro expandido. Em 1988, o malufismo, visto até então como um movimento de elite, enfrentou a petista Luiza Erundina, que buscava se conectar com os eleitores novos da cidade de São Paulo, que vinham retirados do Nordeste brasileiro, assim como ela própria, para trabalhar na construção civil e no setor de serviços, que estava em franca expansão. Resultado, Erundina é eleita, em uma eleição diferente, em que ainda não se tinha o segundo turno.
Em 1992, Maluf, aproveitando-se da baixa aprovação de Erundina e da escolha de um candidato pouco identificado com as massas, como Eduardo Suplicy, da intelectualidade petista e de família tradicional paulistana, consegue ampliar o malufismo para as periferias e vence as eleições. Seu governo é marcado por diversas obras e programas sociais, como Leve Leite, Cingapura e o PAS, que fazem com que sua aprovação bata recordes e chegue na impressionante marca de 61% dos paulistanos considerando sua gestão boa ou ótima, segundo o Datafolha, e apenas 8% de desaprovação. Na sequência, em 1996, consegue eleger Celso Pitta, até então desconhecido, mantendo ainda boa margem na periferia, mas perdendo em alguns zonais do extremo da cruz, principalmente ao sul, para a ex-prefeita Erundina.
A péssima gestão de Celso Pitta destroçou o malufismo, e Marta Suplicy, na eleição de 2000, vence Maluf em toda a cidade, criando uma nova era de comportamento eleitoral, principalmente com a influência do lulismo na presidência da República e o ocaso do malufismo. Marta faz um governo com muitos projetos sociais, como os CEUs, o Vai e Volta e o Bilhete Único, e consegue se perpetrar na periferia da cidade. Sua vida pessoal, a separação de Eduardo Suplicy e algumas polêmicas durante sua gestão, além de uma ojeriza das classes mais altas ao petismo, fizeram com que esse centro adotasse um novo bloco para enfrenta-la. Os tucanos, que governavam o Estado, mas nunca tinham conseguido vencer a prefeitura da capital, lançaram José Serra, ex-ministro de FHC, embalado na polarização PT x PSDB nacional. Serra sai vitorioso, principalmente por ter conseguido assegurar o centro expandido e ampliar para a interligação da cruz, a zona da classe C1.
O fenômeno se repetiu, em 2008, e Kassab, vice de Serra, que havia vencido o governo de São Paulo, repete o perfil de votação de seu antecessor e vence Marta, praticamente nos mesmos zonais que Serra havia feito. 2012, a coloração do mapa se repete, mas Fernando Haddad, consegue entrar na classe C1, derrotando Serra, candidato de Kassab, acusado de esquecer a cidade para montar seu partido, o PSD. Serra ficou preso apenas no centro expandido. 2016, no ponto fora da curva e com o voto da periferia congestionado, dividido entre o prefeito Haddad, Marta Suplicy, candidata pelo MDB e o apresentador popular Celso Russomano, João Doria com seu discurso de gestor e de sobreposição da política, no auge da crise brasileira, venceu em primeiro turno, de maneira atípica até então na cidade.
Na última eleição, uma nova configuração de forças apareceu em São Paulo. Com a saída de Doria para o governo, Bruno Covas, seu vice, assume a prefeitura. Na oposição, o PT faz uma escolha por alguém bastante desconhecido dos paulistanos, Jilmar Tatto, dando a possibilidade de Guilherme Boulos, do PSOL, que havia se candidatado à Presidência da República, com um discurso de justiça social, ser enxergado por essa periferia como o candidato a derrotar o nome oficialista e do centro expandido. Boulos vence em alguns zonais da extremidade da cruz, mas Bruno Covas consegue acachapante vitória no centro expandido e boa penetração na classe C1.
Agora, em 2024, Boulos volta a ser o candidato que melhor penetra na periferia e o atual prefeito Ricardo Nunes precisa preservar o legado histórico do voto das classes mais altas para ser competitivo no pleito. Desconhecido da maioria dos paulistanos, Nunes herdou a prefeitura em razão do falecimento de Covas. Entretanto, o atual prefeito nunca teve um protagonismo na cidade que o conseguisse definir em algum desses espectros de classe social. Ex-vereador da periferia da cidade, tem entre um dos seus principais desafios conseguir manter essa entrada que seus antecessores tucanos e afins têm no centro expandido da capital.
Com a polarização nacional e com o bolsonarismo estando em sobreposição de voto ao despedaçado PSDB, com a saída da vida pública de Doria, morte de Bruno Covas, bandeamento de Geraldo Alckmin para o PSB e aposentadoria de José Serra, os principais nomes do partido no Estado, Nunes precisa desse voto para se consolidar no eleitorado das classes A e B. Seu trabalho até aqui parecia muito profícuo, conseguindo se isolar nesse campo e crescendo nas pesquisas de opinião pública. O inesperado, todavia, ameaça demais sua postulação. A entrada de Pablo Marçal, coach bolsonarista, em alta após a divulgação de sua ajuda humanitária ao Rio Grande do Sul e embate com a TV Globo, arquirival do bolsonarismo raiz, e o balão de ensaio de uma candidatura de José Luiz Datena, fazem com que o prefeito derreta nas sondagens de opinião pública.
Comparando as pesquisas CNN/Atlas, com um intervalo de 1 mês, após o anúncio dessas inesperadas candidaturas, é possível ver a mudança do comportamento eleitoral: Em abril, Nunes apontava com 33,7%, em empate técnico com seu principal rival Boulos. Já em maio, com Marçal e Datena, o prefeito cai para 20,5%, uma perda de quase 40% do seu eleitorado para esses novos atores. Marçal tem um potencial destrutivo nas classes mais altas e Datena, justamente, na classe C1, que tem o elemento segurança pública como um dos principais motivadores para o voto.
Sabedor da importância que Marçal tem para prejudicar Ricardo Nunes, Guilherme Boulos chamou o empresário para o ringue nessa semana. Aproveitando-se da presença de Marçal em uma comissão da Câmara dos Deputados, Boulos o atacou diretamente e, na tentativa de mexer com o brio do postulante, disse para que ele não “venda sua candidatura para Ricardo Nunes”, buscando justamente o efeito rebote disso e a consolidação de seu nome na disputa. Para Boulos, o sonho de consumo é enfrenta-lo no segundo turno e tentar uma polarização Lula x Bolsonaro na cidade. Vale lembrar que Lula venceu na capital paulistana no último pleito.
Ricardo Nunes não pode se dar ao luxo de perder oficialmente o apoio de Bolsonaro. Tem que manter Marçal apenas entre os mais fanáticos, sendo a alternativa real anti-PT na cidade. Nunes é um candidato forte de segundo turno, com menos rejeição e que, mesmo com uma administração razoavelmente avaliada, pode ter os votos de todos os que temem uma vitória de Boulos. Há que se ter muito cuidado com a estratégia de neutralidade feita, por exemplo, por Rodrigo Garcia, no governo do Estado. À época, Garcia dizia: “nem para esquerda, nem para a direita, é pra frente que eu vou.” O resultado, contudo, foi de uma ida para trás, ficando fora do segundo turno, mesmo tendo uma gestão mais bem avaliada do que a de Nunes, agora. A entrada de Marçal mexe com o tabuleiro e cabe a Nunes conseguir se manter firme na correta construção de posicionamento que vinha sendo feita.
Fonte: Bruno Soller/ Estadão