O desnudar das instituições presenciado nesta semana pelo cidadão brasileiro revela o distanciamento profundo entre representantes e seus representados. É um dos fenômenos contemporâneos que enfraquece as democracias e o Estado. As capas pretas dos ministros do Supremo Tribunal Federal rodaram mais que as baianas do candomblé, despejando pimenta ardida sobre o líder do governo Senado, Jaques Wagner (PT-BA), que exerceu sua prerrogativa parlamentar de votar numa matéria em tramitação no Congresso. Um senador votar de acordo com sua convicção deveria ser coisa normal, mas descobriu-se que ele deve obedecer à determinação de uma sentença que paira onipotente sobre todos brasileiros.
sta é uma comédia de erros que Shakespeare jamais sonhou escrever numa noite quente de verão. As alegres comadres de Brasília decidiram apressar a sucessão das Mesas Diretoras e avançaram em alianças e conchavos para votar determinadas matérias que atendem ao interesse de grupos específicos. É o interesse individual de sentar numa cadeira única movendo projetos de impacto geral, ameaçando criar crises institucionais que podem mandar o interesse coletivo para junto das botas de Judas. Esta é a motivação inicial do espetáculo semanal de Brasília.
Os conservadores que deixaram o poder juntamente com o ex-presidente Jair Bolsonaro, sempre tiveram o Supremo como alvo de sua ira. Elevada exponencialmente após a campanha eleitoral de 2022, e que transbordou em 8 de janeiro deste ano no quebra-quebra de Palácios e tentativas de assassinar perigosas obras de arte. Querem limitar poderes da corte maior, abrindo caminho para se chegar a cassar mandatos de ministros do STF. Começaram agora por baixo, ao propor Emenda à Constituição limitadora do procedimento de vistas e impedir que ministro possa suspender monocraticamente decisão de chefe de outro Poder. Como a sucessão do Senado já começou um ano antes da hora, esse grupo bolsonarista enxergou a oportunidade de fortalecer um nome na disputa que permita a continuação da batalha com o Judiciário, incomodando ainda o governo ao qual são oposição.
Por sinalizar o fortalecimento de um nome para a sucessão no Senado, o grupo demonstra capacidade de influenciar no jogo da Câmara Alta para criar um presidente independente do governo. Seria uma versão de Arthur Lira do Senado. E esse papel caberia em Davi Alcolumbre, que foi próximo de Bolsonaro no começo de seu mandato, mas se distanciou no fim e acabou nas graças do PT em 2022, com rara habilidade e senso de oportunidade. Nessa jogada, os bolsonaristas usaram a tese legítima que acabou tendo o voto do líder do governo no Senado, Jaques Wagner.
A reação veio envenenada como uma espada hamletiana. Após aprovação da matéria no plenário do Senado, ouviram-se os tambores da guerra entre bravatas, frases de efeito, ameaças veladas e explícitas, recados duros como o mármore do Palácio da Justiça. Julgamentos de interesse do governo podem ser atrasados, enquanto matérias que podem prejudicar as contas públicas podem entrar na pauta. Coisas de assustar até as tradicionais famílias italianas da Sicília.
Brigam aqueles que não têm razão com os que perderam o juízo. O próprio Supremo vinha limitando os pedidos de vista, e a questão de decisões monocráticas passou a ser questionada internamente. São dois procedimentos nefastos à democracia: foram usados recentemente para objetivos nada nobres e criaram crises artificiais e que foram revistas em Plenário pelo próximo STF. Vistas indefinidas serviram a interesses corporativos do próximo Judiciário e outros casos foram de uma duvidosa espera de momentos adequados para conseguir uma composição de corte mais adequada a obter a concordância dos companheiros de toga. Decisões exorbitantes limitaram atos legítimos do Congresso e do Executivo, de maneira autoritária e antidemocrática.
Se o próprio Supremo está ciente da necessidade de limites, que mal há na PEC do Senado? Talvez porque se enxergue a abertura de uma seara que pode abrir nova senda para se explorar novos limites futuros. Inclusive limites de gastos, que somente o Poder Executivo é obrigado a respeitar. Outros temas polêmicos, como limitar tempo de mandato de ministro do STF ou um impeachment de integrante da corte, enfrentam muito mais resistência do que sugerem as vãs aparências.
Há muito barulho que poderia ser por nada, mas acaba sendo por tudo, até pelo reino sem cavalo, sem teto, sem emprego. O Supremo não admite que suas prerrogativas sejam tocadas. Risca o chão com frases de lava derretida, quem passar se queima. E o país arde sem que os problemas mais urgentes, reais e que permanecem intocados sejam realmente debatidos com a mesma paixão e ardor. No Brasil, os interesses corporativos ou individuais são muito maiores que os coletivos.
Por: Márcio Freitas