O voto da ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, descriminalizando o aborto de feto até 12 semanas é um manifesto parlamentar. Não interpreta a Constituição, na verdade faz acréscimo à legislação em vigor. Quem deveria ter o papel de legislar, o Congresso, não conseguiu construir, por anos, consenso mínimo para votar uma lei sobre o tema.
O assunto divide a sociedade. Políticos precisam de votos e temem perder eleitores. A resistência à alteração na legislação é organizada e presente, principalmente pelos grupos religiosos cada vez mais fortes. A divisão de Poderes estabelece que o Parlamento decida essas questões para minimizar os conflitos sociais, justamente pela dependência do voto para prestar contas em eleições.
Votar contra ou a favor em matérias polêmicas pode determinar o fim de carreira de um político, ou sua continuidade. Justamente por isso os temas mais delicados passam a ser tratados no Legislativo, porque só quando se alcança um determinado consenso é que se torna possível votar determinadas matérias sem provocar grandes reações sociais. Alcançar consenso pressupõe muita discussão e amplo diálogo, capacidade maior de ouvir do que de falar.
O sistema se preserva desta forma, dentro de um jogo em que setores progressistas pressionam e conservadores buscam manter a ordem vigente. Anda-se devagar. Não votar, significa muitas vezes que o tema não está maduro. Avançar na legislação para regular, permitir determinados comportamentos ou abrir possibilidades só ocorre quando há menos tensões envolvendo determinados assuntos.
O próprio STF fez esse jogo ao avançar uma casa, mas sem efetivar a decisão e concluir o jogo. Ainda há resistências ao tema internamente. Mas a maior força contrária está na parte externa, em grupos conversadores e religiosos. Neles está a principal ameaça de uma reação organizada e forte a uma decisão final como esta sobre tema ainda controverso. A ministra Rosa deixou sua manifestação individual, abrindo a possibilidade de ser pautado mais adiante, mas sem ser concluído imediatamente. Mas esse é um tema que estará no horizonte do novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, um progressista.
Houve reações no Congresso, protestos em igrejas e muita crítica em redes sociais. Assim como houve apoio menor de setores progressistas. O governo federal contempla a discussão tentando se manter com certa distância, mas há setores que apoiam a discussão. O temor do núcleo decisório é isso cair no colo do presidente Lula provocando um desgaste grande.
“Eu desconfio do amor de um homem a seu amigo e à sua bandeira quando não o vejo esforçar-se por compreender o inimigo ou a bandeira hostil”, escreveu o espanhol José Ortega Y Gasset. Neste tema, há mais desconfiança que amor entre os grupos com ideias opostas. Muito da desconfiança acaba alimentando a radicalização. Basta ver nas redes sociais e grupos de whatsapp a intolerância ao se tratar do assunto.
O temor divisionista do debate é concreto, corta e separa fatias sociais como se fosse máquina. Claro, há sempre a possibilidade de um tema como esse ser levado para ser decidido pelo próprio povo, pelos instrumentos legais previstos: plebiscito ou referendo. Mas há dúvidas estratégicas nos dois polos que se dividem sobre esse tema: um não aceita sequer discutir o assunto, enquanto o outro teme um resultado conversador, como foi o caso do referendo sobre proibição das armas.
Enquanto não há solução para o impasse, o assunto vai sendo levado com os progressistas empurrando e conversadores barrando as mudanças. Em tempos de divisão, o melhor é não se orientar pela negação do abismo que separa grupos sociais, sob o risco de se cair num fosso de onde se é quase impossível sair. Essas soluções empurradas goela abaixo da sociedade podem provocar traumas imensos.
Fonte: Márcio de Freitas / Exame.