Não importa o número exato: o ex-presidente Jair Bolsonaro colocou multidão na Avenida Paulista em São Paulo. Ignorar a força da manifestação seria negacionismo cínico, até mesmo às obras de arte do elitista Masp – prédio flutuando logo acima da turma que, claramente, prefere atrativos culturais menos sofisticados para os momentos de lazer.
Reconhecer isso é o primeiro passo para entender que o sentimento de apoio ao ex-presidente não se desmanchou no ar desde que ele deixou o Palácio do Planalto. É forte a blindagem que foi apresentada como algo dissuasório aos adversários e aos investigadores que ameaçam a liberdade do atual líder da oposição. Tática de guerra, travada até então nos tribunais e que Bolsonaro sinalizou que pode levar às ruas. Pelo menos enquanto ele estiver livre das garras do Judiciário, que continua na coleta de provas e pode responsabilizar em breve os envolvidos na chamada tentativa de golpe.
As ruas, no caso, são território onde haverá disputas eleitorais neste ano. A força de Bolsonaro no último domingo de fevereiro impactou o governo Lula mas, principalmente, seus próprios aliados. Havia dúvidas em muitos segmentos sociais sobre a atual dimensão do bolsonarismo, depois da derrota e das revelações sobre o envolvimento direto de seu governo na minuta do golpe. Não há mais.
Bolsonaro é a cal unificando, hoje, as tendências de direita no país. Lula é a cal unindo a esquerda. Daí um termo calcificação usado por Felipe Nunes e Thomas Traumann sobre o momento político polarizado do país no seu Biografia do Abismo. É um ponto inescapável da política brasileira atual.
O patrimônio político de Bolsonaro foi avaliado a olhos vivos pelos seus candidatos a herdeiros, e os principais estavam no alto do trio elétrico olhando o mar de gente abaixo. Governadores, senadores, deputados e prefeitos se enfileiraram para olhar diretamente nos olhos do bolsonarismo e tentar desvendar seu mistério de esfinge – quem não o decifrar pode ser devorado pelos adversários ou, pior, pela própria autofagia do movimento. A primeira prova já será em outubro deste ano. A dúvida é se o líder estará ainda entre eles para liderar a massa na campanha eleitoral. Ou em qual momento será retirado da cena nacional.
Ficou patente a ameaça de retirada da liberdade de Bolsonaro no curto prazo. Está na agenda política, evidenciada pelo apelo feito pelo próprio ex-presidente ao pedir anistia para seus eleitores na depredação promovida em 8 de janeiro de 2023. A palavra soou como senha, um grande acordo para poupá-lo do destino trágico. Não se ouviu resposta pública a tal discurso do mundo político. Poucas vozes se ergueram no mundo jurídico. Algumas expressivas, como o ministro do STF Gilmar Mendes, foram contra a continuidade da proposta.
O discurso não teve, portanto, os ecos esperados. Bolsonaro propalou suas falas usando colete à prova de balas, visível sob a camisa amarela. Protegido de novas facadas, tentando evitar perdas e danos além da inelegibilidade, revelou furos em sua blindagem. Os herdeiros registraram, e os movimentos pela disputa do espólio começou, quer queiram ou não, quer admitam ou não. A política se parece muitas vezes com o casamento de certas aranhas, onde uma devora a outra depois de se acasalar.
Fonte: Márcio de Freitas/ Exame