“Não são só 20 centavos.” A célebre frase que marcou uma era de protestos na cidade de São Paulo, em 2013, que impactaram sobremaneira a avaliação de Fernando Haddad, à época prefeito da capital paulistana, já mostrava o potencial destrutivo do péssimo serviço prestado pela administração pública aos cidadãos no transporte municipal.
Haddad chegou a revogar o aumento na passagem dos ônibus, mas mesmo assim a revolta popular era tamanha que evoluiu para uma série de outras manifestações que desencadearam, inclusive, para o fortalecimento de um espectro ideológico, até então adormecido, da direita brasileira, que mais tarde saiu às ruas para protestar contra o governo de Dilma Rousseff e foi um dos estopins para o seu impeachment.
Quase 11 anos depois, a mesma prefeitura de São Paulo se vê involucrada em uma série de denúncias contra as empresas Transwolff e UPBus, suspeitas de envolvimento direto com o PCC – Primeiro Comando da Capital, organização criminosa que gerencia o tráfico de entorpecentes, e que cuidava do transporte municipal paulistano. A Operação Fim da Linha, comandada pelo Ministério Público de São Paulo e o GAECO, cumpriu mais de 50 buscas e realizou a prisão de 4 pessoas, envolvidas com as empresas que são responsáveis por transportar 16,68 milhões de passageiros por mês na cidade. As empresas receberam quase R$ 1 bilhão dos cofres públicos no ano de 2023 para atender a demanda de transporte na zona sul e leste de São Paulo.
O valor da passagem que motivou as manifestações no início do governo Haddad, hoje é quase 50% mais caro e o serviço prestado continua sendo um problema para o cidadão. As superlotações, o tempo de espera, a falta de segurança nos pontos de ônibus e nas dependências dos veículos, as condições infraestruturais e os percursos das linhas são sempre pontos de reclamação para a população.
Uma pesquisa realizada pela FSB, encomendada pela CNI, em âmbito nacional, mostra que 57% dos brasileiros considera pouco ou nada avançado a gestão de política de mobilidade urbana no Brasil. Com o advento dos aplicativos de transporte, que baratearam o transporte individualizado em relação aos taxis, muitas pessoas admitem que buscam se locomover com a ajuda desse serviço para evitar os ônibus. As altas distâncias entre trabalho e residência, todavia, fazem com que essa alternativa seja diminuta e muita gente ainda dependa exclusivamente das linhas viárias para se transportar.
Na cidade de Belo Horizonte um recente episódio de embate político acabou afetando diretamente a população na utilização dos ônibus municipais. Um reajuste de 33% no aumento das passagens, fazendo com que o custo do tíquete para embarque chegasse a R$6,00, criou uma verdadeira revolta da população contra o prefeito Fuad Noman, que precisou renegociar com a Câmara dos Vereadores e aumentar consideravelmente o subsídio para as empresas para garantir uma redução no preço, que mesmo assim continua mais alto do que a média nacional.
De acordo com o Instituto Opus, para 23% dos belorizontinos o transporte público é o maior problema a ser enfrentado. Um número altíssimo e que prejudicou a imagem do prefeito, que herdou o comando da cidade de Alexandre Kalil, de quem era vice, e ainda não conseguiu se mostrar competitivo nas sondagens eleitorais para a sua reeleição, patinando entre 7 e 11% das intenções de votos, considerando as mais variadas pesquisas realizadas nos últimos meses, por diferentes institutos.
Extremamente bem avaliada, a administração de João Campos, em Recife, por exemplo, também não está imune a críticas no que diz respeito ao transporte. Um levantamento feito pela Moovit, que avaliou 100 metrópoles em todo o mundo, mostra que Recife ocupa a sétima posição na demora para se deslocar por transporte público. São 64 minutos em média para uma viagem, algo que afeta o dia a dia dos milhares de passageiros que utilizam o serviço.
Uma lei que obriga os ônibus terem ar-condicionado na cidade vai fazer com que a frota se atualize 25% a cada ano, até que alcance 100% dos veículos. Demanda de muitas cidades, a aplicação do ar-condicionado traz consigo um outro debate, que é a necessidade de se adaptar a quantidade de passageiros por veículo. A superlotação não permite com que a climatização seja sentida e ainda por cima gera um incomodo ainda maior ao passageiro que não tem a opção de abrir as janelas para conseguir um pouco de ar puro em meio à caótica condensação de pessoas.
A relação entre poder público e as empresas de ônibus é sempre um capítulo à parte. Muitas denúncias de pagamentos de propinas para vencer licitações e domínios por anos a fio das mesmas empresas, seja qual for o governo, são pontos que precisam de extrema fiscalização por parte dos órgãos reguladores.
No Rio de Janeiro, Jacob Barata Filho, conhecido como o “rei do ônibus” foi preso após confirmar o pagamento de R$145 milhões em propinas para as campanhas do ex-governador fluminense Sérgio Cabral Filho, entre 2010 e 2016. Esse é só mais um episódio, que parece corriqueiro nas mais diversas regiões do país.
Cidades menores também não estão imunes ao controle longínquo de empresas, que dominam o serviço e são essenciais para a definição das eleições locais. A força econômica dos grupos que controlam o transporte faz com que em vários municípios brasileiros seja comum eleitores em grupos qualitativos apontarem esses empresários como os “donos da cidade.”
Na região do grande ABC, na cidade de Santo André o empresário Ronan Maria Pinto foi condenado a prisão por um esquema de corrupção instaurado no transporte público, durante a gestão do prefeito assassinado Celso Daniel. Linhas investigativas sugerem que a motivação da morte do ex-prefeito esteja ligada à máfia do transporte e a negativa do prefeito em fazer parte do esquema.
São raríssimas as cidades brasileiras que contam com um serviço de transporte bem avaliado. Exemplo para todo o Brasil, Curitiba, com o seu planejamento urbano, corredores e pontos bem característicos é uma das cidades que conseguem se diferenciar nesse lamaçal de críticas ao sistema de viação.
Subjugada a um segundo plano, a crise dos transportes tem um componente ainda mais sério para o cidadão. O serviço é pago por ele e consome boa parte de seu rendimento. Levantamento da ABEP mostra que para as classes C2 e D, o custo com transporte chega a atingir mais de 20% da renda dos trabalhadores.
A revolta com a falta de um serviço de qualidade é, portanto, mais do que justificada. Não são só os centavos, mas também são eles. O tema é quente e pujante na sociedade e não são só gratuidades aos domingos ou soluções efêmeras que vão resolver o problema dos habitantes. Urge atenção e responsabilidade para que a dignidade dos usuários seja garantida ou os mandatários são os que serão transportados para uma outra posição que não desejam, para bem longe da cadeira de comando dos municípios.
Por Bruno Soller